Na educação musical, o que o professor conceber como música será determinante sobre sua atividade de ensinar. O quid1 da música assumido pelo professor regerá os conteúdos, a didática, os valores e seus desdobramentos. Assim sendo, pode-se pensar que, para se desenvolver uma atividade pedagógica em música, é subjacente ao professor um saber relacionado com uma concepção, que passa pela questão sobre “o que é música”. Portanto, nas situações onde alguém aprende e alguém ensina, aquilo que “é” música para o professor será o paradigma de seu pensamento em ação2. Da parte do professor, os pressupostos e valores atribuídos à música seriam determinantes sobre o processo de ensino como um todo mais complexo, na medida em que envolve diversas perspectivas da música: neste processo de ensino, a figura do aluno é a primeira que nos vem à tona.
As considerações sobre as concepções de música na educação musical possibilitam o paulatino aprofundamento de uma análise mais detalhada deste cenário “professor-aluno”, permitindo a problematização – para além de uma simples constatação – de outro fato importante a ser considerado no âmbito da significação e do processo de ensino-aprendizagem em música: a concepção do professor interage com a do aluno. Isto é, aquilo que o aluno conceber como música – suas vivências, valores, expectativas etc. – também terá um papel importante no processo de ensino-aprendizagem, uma vez que seu interesse e envolvimento refletem profundamente na atuação do professor – seja no viés psicológico, metodológico, didático, etc.
Com base na premissa muito usual de que um professor deve estar preocupado em conhecer o universo do aluno, há que se fazer a pergunta: o que o aluno compreende como música? O que é isso que ele chama de música? Esta pergunta pode suscitar a impressão, num primeiro momento, de certo ar de superioridade, de relação vertical e soar até mesmo jocosa, caso se parta de um pressuposto etnocêntrico de que o aluno não possui a destreza de nomear e descrever a sua noção de música fundamentado nos jargões correntes de uma suposta “linguagem musical”, como se fosse isso o mais importante – a propósito de uma comum presunção inerente ao espírito e a certa lógica acadêmica da existência de um único domínio (posse/lugar) dos conceitos “corretos”. Contudo, se tal investigação for permeada por um espírito de alteridade, no qual se busque compreender o outro para melhor compreender a si, a pergunta ganha outro sentido (direção/significado). Ou seja, ao se interessar em conhecer o que o aluno “entende por” e “concebe como” música, o professor também será incluído no universo de abrangência de uma questão muito maior, que é a de pensar sobre o que professor e aluno chamam de música e, também, onde e como suas concepções são divergentes. Por esta razão, acredito que quanto mais tentar compreender o que o aluno concebe como música, mais possibilidades se abrirão ao professor de refletir sobre suas próprias concepções de música e também sobre a sua prática pedagógica.
Se este encontro de concepções apresenta a possibilidade de diferentes – e ricas – experiências, dada a sua diversidade, por outro lado é também motivo de mal-entendidos, no sentido de que as partes envolvidas tendem, na maioria das vezes, a não se entender, ocasionando até mesmo conflitos etnofóbicos – uns mais evidentes que outros. Em tais circunstâncias não há a possibilidade de haver uma ontologia da música, senão “ontologias idiossincráticas” da música. O que não significaria negar uma ontologia da música, mas significaria que em tais circunstâncias esta não é possível. O professor pode encontrar ricas possibilidades pedagógicas se tiver perspicácia de identificar as peculiaridades de sua própria concepção de música e a(s) de seu(s) aluno(s), suas diferenças, semelhanças e seus valores – estes últimos, inegociáveis. Ademais, uma pergunta sobre “o que é isso que chamam de música” sequer entra na discussão metafísica sobre “o que é música”, mas a descreve com distanciamento.
É importante salientar ainda que “professor” e “aluno” no singular são abstrações que na prática transformam-se em “professores” e “alunos”, isto é, a complexidade se configura ainda mais como uma intrincada rede de valores, significados, premissas, pressupostos etc. E se continuarmos a nos aprofundar, encontraremos outras concepções de música em jogo: a instituição, os pais dos alunos, grupos sociais diversos, os amigos etc., onde todos os agentes atuam com seus discursos, ações e concepções no complexo processo de ensino-aprendizagem.
A relação entre estas diferentes concepções de música coexistentes nos contextos educacionais (professor, aluno, instituições educacionais, instâncias políticas deliberativas, parâmetros e diretrizes, família, grupos étnicos, religiões, ONGs etc) passa então de um problema contingente, para uma questão filosófica: “o que é isso que chamam de música?”. Considerando, portanto que já não se trata mais da pergunta “o que é música?”, questão eminentemente ontológica sobre o “ser” da música, buscarei apoio na filosofia da linguagem, para que o problema seja tratado como um problema filosófico da linguagem. Mais especificamente, esta “investigação filosófica” da “linguagem sobre música” será fundamentada no pensamento do filósofo da linguagem Ludwig Wittgenstein (1889-1951) para quem a função da filosofia é principalmente a de desatar os nós da linguagem.
São dois importantes livros adotados neste trabalho: o primeiro, o Tractatus Logico-Philosophicus (1921), baseia-se na ideia de que “os limites do mundo são os limites da linguagem”. O autor crê que a formulação dos problemas filosóficos “repousa sobre o mau entendimento da lógica de nossa linguagem” e diz que, se pudesse resumir seu livro as palavras seriam estas: “o que se pode em geral dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” (WITTGENSTEIN, 2008, p.131). Ao elucidar os critérios de uma linguagem ideal Wittgenstein pensou ter resolvido “de uma vez por todas” os problemas da filosofia.
Porém, após 33 anos da publicação do Tractatus surgem, postumamente, as Investigações Filosóficas (1954), com um prefácio de 1945. Nesta obra, Wittgenstein rompe com a lógica normativa, pois percebe que a linguagem na vida cotidiana não se baseia em uma linguagem “matematicamente” perfeita – como buscava no Tractatus – mas são sim determinadas pelo contexto social ao qual pertencem. Wittgenstein apresenta o conceito dos jogos de linguagem que, tal qual os jogos, possuem cada qual suas regras específicas que não se aplicam a todos os jogos; porém entre si, guardam em comum uma característica principal: o fato de ser um jogo! Segundo Wittgenstein, uma definição para esta palavra é difícil de ser dita, por não ter uma clareza “lógica” normatizadora; porém a ideia de jogo pode ser mostrada, uma vez que existem jogos de todo tipo – tais como cartas, xadrez, futebol etc. – distintos uns dos outros, mas que são, apesar disso, jogos.
§ 69. Como explicaríamos a alguém o que é um jogo? Creio que lhe descreveríamos jogos, e poderíamos acrescentar à descrição: “isto e outras coisas semelhantes chamamos de ‘jogos’“. E nós próprios sabemos mais? Será que apenas a outrem não podemos dizer exatamente o que é um jogo? – Mas isto não é ignorância. Não conhecemos os limites, porque nenhum está traçado. […] [P]odemos – para uma finalidade particular – traçar um limite. É somente a partir daí que tornamos o conceito útil? De forma alguma! A não ser para esta finalidade particular […] (WITTGENSTEIN, 1975, p. 44).
Portanto, a linguagem gozaria também desta diversidade e cada Jogo de linguagem tem sua característica e joga-se em e de acordo com as regras de cada contexto determinado – seja de um país, de uma sociedade, instituição, ciência, disciplina etc. Para Wittgenstein, então, não há a possibilidade de uma palavra ser descrita fora de seu uso, uma vez que o seu significado emerge do contexto no qual foi empregada, ouvida e utilizada.
Mas, quais seriam as contribuições de Wittgenstein para a educação musical? Antes de mais nada, é fundamental considerar que uma abordagem da educação musical na perspectiva da pragmática wittgensteiniana não objetiva instaurar uma pedagogia, pois somente o próprio filósofo poderia fazer isto. No entanto, as ideias de Wittgenstein ajudariam a pensar a educação e, particularmente, o lugar ocupado pela linguagem nessa atividade “longe da influência da filosofia moderna e do ensino ostensivo, que, até então, respectivamente, fundamentaram as teorias pedagógicas e se incrustaram nas práticas de ensino” (LOURENÇO, 2008, p.53).
Atentamos para as inquietações filosóficas de Wittgenstein frente à linguagem, pois elas transformam o rumo das reflexões, podendo fazer do uso da linguagem em Educação e no ensino um exercício filosofante, que tem como inspiração a característica terapêutica de sua filosofia. Nesse sentido, em Educação, com especial atenção para a atividade educativa, na qual professores e alunos se relacionam, é preciso considerar uma infinidade de situações que se assemelham e se diferenciam nos processos de ensino e aprendizagem (LOURENÇO, 2008, p.53).
Ao trazermos as reflexões de Wittgenstein para o campo da educação musical, espero poder contribuir com uma abordagem que até então não encontrada em pesquisas no campo da educação musical, no Brasil. É o que veremos no próximo post.
1Quid est… – O que é…
2Levando-se em consideração que o professor de música pode ter das mais variadas formações – seja ele um profissional que recebeu treinamento na academia, ou por egressos desta, ou que não teve nenhum processo sistematizado – é bastante possível que este reproduza uma noção de música que perpassa pela sua própria. Seguindo este raciocínio, não é raro que muitos professores venham a impor – “amistosamente” e sem o perceber – a sua própria concepção de música como a mais correta, pois que é oriunda de experiência e, em alguns casos, erudição.
LOURENÇO, Denise Moraes. Educação e linguagem : algumas considerações sob a Perspectiva filosófica de Wittgenstein. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2008.