O que é isso que chamam de música? A questão enunciada por José Estevão Moreira é o fio condutor deste livro que vem à luz tão oportunamente, neste momento chave da educação musical no Brasil, em que ela se defronta ao desafio de sua implementação em todas as escolas brasileiras.
Por meio desta questão seminal o autor traz para o campo da música a reflexão de Wittgenstein sobre a linguagem, tomando como conceitos operacionais, sobretudo, as noções do segundo Wittgenstein, das Investigações Filosóficas, tais como os jogos de linguagem, as semelhanças de família, as formas de vida. Ou seja, adotando uma perspectiva sobre a linguagem – consequentemente, sobre a música – a partir de suas práticas.
A generosidade do autor na clareza da exposição e na fluidez do texto, assim como sua cordialidade na insistência em elucidar os conceitos fazem deste livro um instrumento precioso para o educador musical, não necessariamente familiarizado com o texto filosófico.
A problemática levantada por José Estevão traz uma contribuição importante no contexto atual de obrigatoriedade do ensino de conteúdos musicais na educação básica. Um processo dessa envergadura não pode passar ao largo de um questionamento sério e severo sobre o que é isto a que chamamos educação musical ou o que queremos dizer quando dizemos educação musical. O presente livro busca alicerçar uma concepção de educação musical atenta para a diversidade das concepções e práticas musicais que, embora tenha adesão de numerosos educadores musicais, muitas vezes carece de um assento conceitual mais denso. A reflexão nele desenvolvida contribuirá certamente para dar solidez e nutrir as práticas pedagógicas.
O encadeamento das operações conduz, ao longo do percurso investigativo do livro, a uma proposta de educação musical entendida como acolhimento da alteridade, como compreensão das múltiplas formas de vida ou dos múltiplos jogos de linguagem, que se configura, sobretudo, numa ética de educação musical. Pois se nas relações e trocas sociais, como lemos no texto, os valores são inegociáveis (p. 224), e se a alteridade implica necessariamente um estado de tensão, cabe nos indagar, como o fez outrora Emmanuel Lévinas, em sua reflexão sobre a responsabilidade, suscitada por fatos históricos extremos de hostilidade ao outro: O que é o humano? A humanidade se impõe, afirma Lévinas, no ponto mesmo onde o outro é o indesejável por excelência, onde o outro incomoda, me limita1. O outro é, assim, em sua radicalização, justamente aquilo que me é estranho, aquilo com o qual não possuo semelhanças. O acolhimento deste outro – a responsabilidade pelo dessemelhante – é uma ruptura da ordem da natureza, fundamentalmente humana, e por isso mesmo obrigatória.
Desta forma, a riqueza do presente livro para o educador musical parece estar menos na prescrição de uma determinada ética pedagógica do que numa reflexão filosófica, latente e subjacente em todo o percurso do livro, sobre as possibilidades do reconhecimento, não mais somente das semelhanças de família que irmanam, sob a noção de música, as diversas formas ou modos de vida, mas daquilo que as faz mais dessemelhantes. Ou seja, na direção do acolhimento da alteridade radical – da forma de vida do outro justamente naquilo em que ela me é mais incompreensível, naquilo em que ela me é mais inaceitável. Na hospitalidade tal como ela é, analogamente, formulada por Jacques Derrida: somos inevitavelmente expostos à vinda do outro. A hospitalidade é a exposição ao outro naquilo em que ele nos afeta. Há hospitalidade pura quando o outro não é nem convidado, nem esperado, e quando preciso me transformar por ele. Pra acolher o outro, o anfitrião suspende as barreiras imunitárias com as quais se protegia, aceitando expor-se ao seu visitante, cujas leis e comportamentos lhe são incompreensíveis e imprevisíveis. E é justamente nos confins da linguagem que, para Derrida, a hospitalidade se torna radical. Na desconstrução, afirma ele, o que ocorre com a língua é da ordem da hospitalidade incondicional. O outro que ela acolhe a obriga a falar diferentemente2.
Quais linguagens, quais formas de vida para a educação musical de hoje e de amanhã? José Estevão nos conduz, em última análise, a repensar filosoficamente, a partir da investigação sobre a música e a linguagem, as relações estabelecidas na educação: suas bases, seus limites, suas possibilidades.
Maya Suemi Lemos (IFHT-UERJ)
1 Emmanuel LEVINAS, « A assimetria do rosto », entrevista transcrita por Joëlle Hansel, publicada em: Cités 25. Paris, PUF, 2006, p. 115-124.
2 Jacques DERRIDA. Le monolinguisme de l’autre, ou La prothèse d’origine. Paris: Galilée, 1996.