[Este texto é parte integrante do livro “Investigações Filosóficas sobre Linguagem, Música e Educação. O que é isso que chamam de Música?” de Estevão Moreira].
Através de especulações acerca dos jogos de linguagem e as formas de vida, Wittgenstein chega à problematização de um terceiro ponto de grande importancia e que contribuiu ainda mais para torná-lo um filósofo de referência: trata-se do argumento da impossibilidade da existência de uma linguagem privada (IF § 243-315), com o qual Wittgenstein desconsidera a possibilidade de uma tal linguagem que não seja compartilhada e pública nos jogos de linguagem. Isto é, para que haja referência a um conceito, este requer critérios e mesmo uma dor alheia – que eu não sinto – pode ser compreendida como tal, pois, apesar de eu não senti-la, conheço o conceito de dor. E não se trata de uma “dor” que é pública, mas um “conceito de dor” que é público e, portanto, possível de ser compartilhado.
Para que tenhamos consciência dos nossos estados, é necessário que possamos correlacioná-los e distinguí-los, de tal modo que saibamos quando um determinado estado se assemelha ou difere dos demais anteriormente vividos. Jamais poderíamos saber que estamos sentindo uma determinada dor se não fôssemos capazes de nos representar estados anteriores ou atuais com os quais aquilo que chamamos de dor possa ser comparado (DIAS, 2000, p. 29).
Os jogos de linguagem contem regras e, ao participante, requer-se que partilhe das mesmas. E esta participação nas regras é constatada não na teoria, senão na própria prática, a saber: no domínio de uma técnica, uma habilidade em responder corretamente (de acordo com o contexto) determinadas situações. Assim, esta regra à qual Wittgenstein está se referindo não se trata de algo que se poderia “seguir apenas uma vez na vida”; este tipo de regra que está em questão não é aquela do tipo que apenas uma pessoa segue “uma única vez” na vida para se comunicar. Wittgenstein está se referindo às regras da linguagem utilizadas para “fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez [e que] são hábitos (costumes, instituições)”. Wittgenstein afirma, portanto, que “compreender uma frase significa compreender uma linguagem. Compreender uma linguagem significa dominar uma técnica” (WITTGENSTEIN, 1975, p.91).
Mas a todo momento temos dito que Wittgenstein não quer estabelecer regras, e é de fato isso que ele não faz. O novo salto na compreensão coloca um “paradoxo” em evidência. Lembremos que o primeiro Wittgenstein havia estabelecido as regras, que deveriam “resolver de vez o problema” da comunicação e da filosofia, porém, o segundo Wittgenstein percebe, na sua observação, elucidação e descrição dos jogos de linguagem que estas regras de fato existem, mas que nada tem em comum com uma regra suprema que poderia ser declarada simplesmente.
Nosso paradoxo era: uma regra não poderia determinar um modo de agir, pois cada modo de agir deveria estar em conformidade com a regra. A resposta era: se cada modo de agir deve estar em conformidade com a regra, pode também contradizê-la. Disto resultaria não haver aqui nem conformidade nem contradições. Vê-se que isto é um mal-entendido já no fato de que nesta argumentação colocamos uma interpretação após a outra; como se cada uma delas nos acalmasse, pelo menos por um momento, até pensarmos em uma interpretação novamente posterior a ela. Com isto mostramos que existe uma concepção de uma regra que não é uma interpretação e que se manifesta, em cada caso de seu emprego, naquilo que chamamos de “seguir a regra” e “ir contra ela” (WITTGENSTEIN, 1975, p.91, § 201).
Portanto, não se trata de uma “concepção de regra” que se possa subverter a qualquer momento, isto é, subverter sem consequências. O “seguir a regra” é uma práxis e não uma interpretação. Acreditar estar seguindo a regra não é seguir uma regra, daí se conclui “não podermos seguir a regra ‘privadamente’; pois, do contrário, acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra (WITTGENSTEIN, 1975, p.92, § 202). O filósofo enfatiza que este “seguir a regra privadamente” refere-se a regras que supostamente só “eu” poderia seguir e que ninguém mais tem acesso. As regras se tornariam públicas tão logo fossem seguidas, pois estariam evidentes nos efeitos – as ações –, estes baseados por sua vez, naquilo que cada pessoa compreender.
Seguir uma regra é análogo a: seguir uma ordem. Somos treinados para isto e reagimos de um determinado modo. Mas que aconteceria se uma pessoa reagisse desse modo e outra de outro modo a uma ordem e ao treinamento? Quem tem razão? […] o modo de agir comum a todos os homens [de um determinado contexto que desconhecemos a língua] é o sistema de referência por meio do qual interpretamos uma linguagem desconhecida. (WITTGENSTEIN, 1975, p.92)
Portanto é na ação que se encontra o sistema de referência – a evidência de pensamentos e os critério partilhados – para se compreender e aprender uma linguagem, ou melhor um jogo de linguagem e uma forma de vida, pois “[q]uando sigo a regra não escolho. Sigo a regra cegamente” (WITTGENSTEIN, 1975, p.95). E esta é uma formulação que consideramos importante para o presente trabalho, e que será evocada novamente nos próximos capítulos: as ações contextualizam a linguagem, possibilitando a compreensão dos modos de pensar, inerentes à forma de vida que, vice-versa, determinam os modos de fazer, sucessiva e reciprovamente ao infinito.
Wittgenstein está então ponderando sobre as regras que coordenam uma ação em determinados contextos e chega então ao cerne da questão de uma linguagem privada: é possível que alguém estabeleça uma regra só para si mesmo e tenha critérios que não são partilhados por ninguém?
Um homem pode encorajar-se a si próprio, dar-se ordens, obedecer-se, consolar-se, castigar-se, colocar-se uma questão e respondê-la. Poder-se-ia, pois, imaginar homens que falassem apenas por monólogos. Que acompanhassem suas atividades com monólogos. – Um pesquisador que os observasse e captasse suas falas, talvez conseguisse traduzir sua linguagem para a nossa. (Estaria, com isto, em condição de predizer corretamente as ações dessas pessoas, pois ele as ouviria também manifestar intenções e tirar conclusões). Mas seria também pensável uma linguagem na qual alguém pudesse, para uso próprio, anotar ou exprimir suas vivências interiores – seus sentimentos, seus estados de espírito? – Não podemos fazer isto em nossa linguagem costumeira? – Acho que não. As palavras dessa linguagem devem referir-se àquilo que apenas o falante pode saber; às suas sensações imediatas, privadas. Um outro, pois, não pode compreender esta linguagem (WITTGENSTEIN, 1975, p.98, § 243).
De acordo com Maria Clara Dias, “a defesa de uma linguagem privada abala, portanto, a própria possibilidade de uma linguagem pública” (DIAS, 2000, p.68) . Se algo se passa somente dentro de nós, isto é, somente nós temos contato privadamente, este acontecimento não se caracteriza em informação, uma vez que não é público. Não há a possibilidade de que outra pessoa possa colocar em questão, discutir, seja o que for, pelo fato de que não haveria maneiras de estabelecer correspondências entre aquele que sente privadamente e aquele que ouve. Para a instauração do diálogo, faz-se necessário que aquilo que se mostra – aponta-se – possa ser constatado pelo outro: o problema da linguagem privada, portanto, se evidencia quando se quer mostrar algo que está para além da nossa possibilidade de perceber: “[o] fato de dizer de bom grado “o importante é isto” – enquanto indicamos a nós próprios a sensação [privada]– mostra já o quanto somos inclinados a dizer algo que não é nenhuma informação” (WITTGENSTEIN, 1975, p. 110).
Para Wittgenstein, o que caracteriza as vivências privadas não é o fato de que cada pessoa possua a sua particular, “mas que nenhum saiba se outro tem também isto ou algo diferente”. Seria possível a suposição – ainda que não verificável – que uma parte da humanidade tenha uma sensação do vermelho e outra parte uma outra sensação. (WITTGENSTEIN, 1975, 104). A dor, por exemplo, é privada e sua imagem só poderá ser também privada e não compartilhada no jogo de linguagem. O que de modo algum quer dizer que não possamos compreender que o outro tem dores. A dor não se transfere de um ao outro, não se enuncia, porém, há um conceito de dor que é público e sobre o qual podemos falar e compreendermo-nos mutuamente, desde que sejamos participantes de um mesmo contexto no qual se emprega a palavra de acordo com as regras vigentes.
Recapitulando: um jogo de linguagem requer que uma regra (ou um conjunto de regras) seja público, porém isto não significa que tais regras sejam teorizáveis em sua totalidade – ou em uma forma geral – e tais regras só podem ser aprendendidas na prática da linguagem, em seu contexto, através da observação e no pleno exercício, nos usos. Não é possível que uma regra se coloque simplesmente a partir da mente de alguém – e aqui figura uma importante crítica ao cogito cartesiano “penso, logo existo”, chama-nos a atenção Roger Scruton. Aprofundaremo-nos, pois, nesta perspectiva wittgensteiniana: regras implicitas não significam que não sejam públicas.