Notas Musicais: A alegoria dos cegos e do elefante


Há muito, na Índia, um grupo de cegos pediu a um tratador de elefantes sua permissão para tocar em um de seus animais, uma vez que queriam conhecê-lo. Permissão concedida, cada um declarou o que julgava ser o elefante. Um disse que ele era como um coqueiro; outro, um enorme cano flexível com dois orifícios em uma extremidade. O que tocara no rabo do animal contestou, disse que ele se assemelhava a um espanador, sendo objetado pelo que tocara as orelhas, afirmando que a forma era a de um grande abano”.

Esta conhecida alegoria dos mestres indianos ilustra uma situação na qual quatro cegos apresentam seus argumentos como verdades incontestáveis ocasionando um impasse na compreensão do fenômeno global “elefante”. Mostra a idéia de que muitas vezes os discursos se contradizem por se tratarem de facetas da realidade, de tal modo que se as “percepções” dos cegos fossem coadunadas haveria a possibilidade de se compor o “todo”. Tal alegoria (ou metáfora) pode oferecer várias possibilidades de compreensão dependendo para tanto das intenções daquele que a utiliza e/ou a recebe. Isso quer dizer, portanto, que a análise desta metáfora se dará também, se se quiser levá-la ao extremo de sua aplicação, às cegas, tateante.

E será a partir deste exemplo, da metáfora do elefante, que será problematizada a linguagem sobre música, nas próximas postagens – mais precisamente, no que tange à abordagem da música e da educação pela perspectiva da linguagem. Esta linguagem por sua vez não se restringe à língua ou à capacidade de criação e interpretação de símbolos escritos/falados por parte do homem, mas sim de todo o conjunto de artifícios dos quais o homem se utiliza no processo de comunicação que ultrapassa à linguagem falada e escrita, considerando, por exemplo, a possibilidade de ocorrerem situações nas quais a linguagem verbal é o que há de menos importante, como por exemplo, situações nas quais o silêncio é mais eloqüente do que as palavras; ou exemplos onde a credibilidade do falante influencia a recepção da mensagem: “está aberta a sessão” tem um sentido específico se pronunciado por qualquer pessoa, e outro tão mais específico, se pronunciado por um juiz. Em ambos os casos os falantes apresentam diferentes forças que não estão ditas na mensagem, mas que estão implícitas naquilo que Austin conceitou como os atos de fala.

Ou seja, o código verbal por si só – qual, num extremo oposto, o próprio silêncio – quando avaliado nas práticas, apresenta diferentes concepções e consequências (ou efeitos). Isso implicaria dizer que existem códigos tácitos que somente os participantes de um mesmo contexto são capazes de perceber e (re)agir adequadamente; tal questão poderia ser conceituada, nas palavras de Wittgenstein (1953), como jogo(s) de linguagem, ou evocar a idéia de Backgrounds de John Searle. O que estes autores tem em comum é a preocupação com a linguagem, porém não com as suas regras de funcionamento – a sintaxe – mas sim com os seus usos, isto é, a linguagem utilizada na prática, nas ações. Partindo deste princípio, de que os significados veiculados na comunicação somente adquirem sentido no contexto de seu uso, também a linguagem sobre música não poderá ser abordada a partir de uma série de acontecimentos descontextualizados, in vitro; é preciso, ao contrário, levar em consideração a existência de um complexo de redes, atentando para o fato de que um objeto dentro de seu contexto – nas práticas, no cotidiano – não é o mesmo se retirado de seu ambiente, ou ainda, despojado de seus usufruidores.

Nos próximos posts, falarei um pouco mais sobre o segundo Wittgenstein e seus conceitos e também sobre possíveis leituras da alegoria dos cegos e dos elefantes.

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