A concepção agostiniana de linguagem, segundo Wittgenstein, é aquela que se fundamenta em uma ideia de linguagem que se constitui como autônoma na relação pensamento-mundo, com status de inequívoca, uma vez que seria capaz de se referir e denominar os objetos do mundo. Partindo deste princípio, a concepção agostiniana de linguagem tem como verdade que as significações seriam agregadas às palavras, que possuiriam valores absolutos. Uma linguagem fundamentada na concepção agostiniana toma como referência a crença – acima de qualquer suspeita ou cogitação de contrário – na existência de modelos a priori que seriam necessariamente e “naturalmente” seguidos por todos.
No entanto, a própria concepção agostiniana de linguagem não pode se instaurar sem que haja um treinamento no qual aquele que ensina mostra os objetos em um ensino ostensivo de palavras (WITTGENESTEIN, 1975, p. 15). Isto significa dizer que existe um jogode linguagem que deve ser compreendido por aquele que aprende uma denominação, ou seja, denominar é apontar um objeto associando-o a um referencial (conjunto de sons, sinais etc.), o que quer dizer, por sua vez, que a não compreensão do gesto – de apontar – inviabiliza a nominação, pois o observador poderia simplesmente repetir, sem compreender (DIAS, 2000, p.45). Neste caso, há portanto na prática do modelo agostiniano de linguagem a necessidade de um conhecimento prévio que não é percebido ao se conceber “linguagem” como uma denominação ostensiva.
Se se pensar a questão da denominação ostensiva no campo da educação musical, podemos problematizar situações nas quais o professor de música aponta para um determinado acontecimento musical e denomina-o para o aluno. O problema maior reside no fato de que, ao contrário dos objetos que são táteis e visuais, os sons não são visíveis, de maneira que o “apontar” torna ainda menos evidente o que se quer mostrar – i.e. o “parâmetro” ou característica –, a não ser que aquele que aprende já tenha certa vivência com os critérios da prática que o professor aponta. Sobre os critérios, estes devem ser públicos e partilhados no jogo de linguagem.
A concepção agostiniana que Wittgenstein descreve é aquela que pressupõe, portanto, que o ato de apontar será de antemão compreendido pelo ouvinte, pois parte da ideia de que, se os nomes apenas descrevem o mundo, este mundo existe independente da linguagem (como no CRÁTILO). Premissa que está na base da ideia de que, se algum aluno não é capaz de aprender com aquilo que o professor mostra, este aluno “tem problemas” de alguma ordem: ou não é talentoso, ou é “inferior”, ou “não entende e nunca vai entender” etc.
Porém, a perspectiva de Wittgenstein nos mostra exatamente o oposto: que os jogos de linguagem são parte de uma forma de vida (WITTGENSTEIN, 1975, p. 22) e, desta forma, o que chamamos de linguagem não se trata de algo que está fora da vida, mas é parte dela, isto é, a linguagem não é somente uma descrição do mundo, mas é também parte dele. Assim, na educação musical e na linguagem sobre música de um modo geral, podemos problematizar a concepção agostiniana como aquela que se baseia no princípio de que os conceitos musicais são parte do mundo e independem da abordagem linguageira.
Sejamos um pouco mais insistentes, a fim de fazer compreender com algo mais palpável – literalmente. Pensemos na ideia de “círculo”. Dizer que o círculo é redondo é uma tautologia pois se trata de uma informação verdadeira – pela própria definição de tautologia – porém que é verdadeira para um determinado grupo. No entanto, não são encontrados natureza, o círculo, o triângulo e o quadrado. Assim, um pires tem o formato de um círculo, porém, não é o círculo. Este, por sua vez, é uma criação geométrica que é inferida das formas da natureza e que, na empresa platônica de busca da essência, encontra um exemplar que contemplaria todas as “imagens imperfeitas” do círculo, do triângulo e do quadrado que encontraríamos na natureza.
A crítica de Wittgenstein, portanto, atinge também à concepção platônica de linguagem, pois de acordo com Platão, a linguagem em nada contribui para conhecer o mundo. Mas Platão está preocupado em conhecer as ideias que estão, por sua vez, no mundo das ideias. Isto é, do ponto de vista naturalista, não é possível saber se as palavras estão corretas pois seria preciso primeiramente conhecer esta supra-realidade e, se a linguagem não modifica a essência das ideias – pois refere-se somente às cópias imperfeitas das ideias, o mundo continua a existir independente da linguagem. Melhor dizendo, para Platão, uma vez que são apenas imagens das ideias – as essências residentes no “mundo das ideias” – a linguagem não interfere no conhecimento da realidade. E do ponto de vista do convencionalismo, se as palavras variam de uma comunidade para outra, aí sim é que não será possível conhecer a coisa em si (MARCONDES, 1986).
Voltando portanto ao campo da educação musical, termos como “escala”, “tonalidade”, “intervalos”, “linguagem musical” etc., estão comprometidos com contextos específicos e que na verdade só poderíamos fazer uma descrição mais profunda analisando o uso de cada um dos termos em situações reais. No entanto, para a concepção agostiniana de linguagem o uso não faria diferença, uma vez que a linguagem não teria influência sobre a existência de algo estabelecido como “coisa” do mundo, funcionando tão somente como referente – acima da suspeita agostiniana.
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DIAS, Maria Clara. Kant e Wittgenstein: os limites da linguagem. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
MARCONDES, Danilo. A concepção de linguagem no ‘Crátilo’ de Platão. in: Leopoldianum, Vol. XIII, n° 36 Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1986.
WITTGENSTEIN. Investigações Filosóficas. Pensadores. Ed. Abril: São Paulo, 1975.
Meu caro Estevão, ex-aluno querido… colega
há várias questões a seram discutidas mais a fundo em seu interessante e instigante texto. Em primeiro lugar, associar a concepção de linguagem à concepção de música assim, direto, sem vaselina, digamos, fica difícil. Embora com isso você tenha chegado a reflexões interessantes acerca do ensino de música e da aplicação ostensiva dos conceitos, creio que seria interessante você verificar primeiro a versão agostiniana de música. Não tenho as refer~encias aqui comigo (pois estou em Berlim), mas há textos extraordinários sobre música escritos por ele em pleno êxtase musical. Em segundo lugar, hoje, com os avanços teóricos e críticos da antropologia, por exemplo, sabemos que não existe uma única essência, ou uma “coisa em si” fora de um contexto cultural, o que evivale a dizer, em termos musicais, que não existe aquilo que acreditávamos, que a música seria uma “linguagem universal”. Não é. Mas, ao mesmo tempo, não há como negar a importância da linguagem nesse processo de descoberta de conceitos e mesmo da explicitação de suas diferenças culturais e étnicas, pois dificilmente compreenderíamos essas diferenças sem o diálogo. A linguagem não é a vilã da história, mas quem a usa no modo de sua usura.
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Caríssimo Prof. Pedro Paulo!
Certamente! Há muita água passando sob esta ponte!
E, do grande fluxo, este texto é gota.
Seja bem-vindo!
Faço umas pontuações do seu texto:
Sobre “associar a concepção de linguagem à concepção de música”, na verdade não o fiz. Estou falando especificamente acerca da linguagem sobre música. Associar a concepção de linguagem à concepção de música seria falar sobre a “linguagem musical” (termo este que merece ser abordado mais demoradamente). Na verdade faço o oposto: não associo linguagem à música. Mas falo a respeito da linguagem, que por sua vez é utilizada para se referir à música.
“Creio que seria interessante você verificar primeiro a versão agostiniana de música”. A concepção de “música” de Sto agostinho seria, de acordo com a abordagem dos jogos de linguagem, apenas mais uma concepção, de modo que não faço uma crítica à concepção de música de Sto Agostinho, que de fato, e aguardo suas sugestões!
“A linguagem não é a vilã da história, mas quem a usa no modo de sua usura”.
Certamente! E na verdade, não há vilões na história [que conto]. Ressalto apenas o caráter contextual da linguagem e que pode nos dizer muito sobre o que chamamos de música, ou se calar sobre o que não chamamos de música! Não são desconsiderados os valores — inegociáveis — arrecadados pela cultura ao longo do tempo.
A questão específica — reitero — está na questão da “linguagem sobre música” e que reflete, portanto, na ideia de “linguagem musical” (não universal, como vc bem apontou). Ademais, faço um trajeto paralelo aos etnomusicólogos, valendo-me de seus conhecimentos e descobertas, para caminhar no campo da filosofia da linguagem.
Um grande abraço!
Estevão
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Saudações Caríssimo Estavão,
Acerca da sua abordagem, uma leitura que talvez possa ajudá-lo são os artigos da Jacira de Freitas sobre Rosseau e a música (talvez você já até tenha lido). Não tem nada a ver com a concepção agostiniana, porém abre-te um outro leque para discussão do assunto.
Seguem alguns artigos:
FREITAS, Jacira ou ROSA, Jacira de Freitas . Linguagem e música em Rousseau: a busca da expressividade. Trans/Form/Ação (UNESP. Marília. Impresso), v. 31(1), p. 53-72, 2008.
FREITAS, Jacira ou ROSA, Jacira de Freitas . Linguagem natural e música em Rousseau: a busca da expressividade. Discurso – Departamento de Filosofia da FFLCH DA USP, v. n. 37, p. 113-147, 2007.
Um abraço enorme
Arlley Parreira
PS: tive um encontro inusitado com o F.F. Coppola e postei no blogue. Dê uma olhada.
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“[…] com os avanços teóricos e críticos da antropologia, por exemplo, sabemos que não existe uma única essência, ou uma “coisa em si” fora de um contexto cultural […]”
Isso é falso, a menos que se admita o solipsismo (há apenas uma mente no universo) como premissa, e que o “contexto cultural” existe para um único indivíduo mesmo na ausência de sociedade. Mas admitir isso seria uma petição de princípio.
Kant já dizia que a “coisa em si” é intangível e que podemos apenas falar dela caso exista alguma manifestação dela que chegue até nós através dos fenômenos.
Caso se admita que existem pelo menos duas mentes que interagem, mesmo o mais fervoroso construtuvista está admitindo a existência da “coisa em si”. Para duas pessoas se comunicarem, precisam estar conectadas, direta ou indiretamente, em substância. O St. Agostinho provavelmente percebeu que a comunicação dele com outra pessoa era possível, mas exagerou ao acreditar que era simples. Repare que estou enfatizando a pergunta “coisa em si existe?”, e não a pergunta “o que é a coisa em si?”. A fenomenologia já disse (muito antes dessas pesquisas recentes em antropologia) que a segunda pergunta não temos como responder. O erro, acredito, está em misturar essas duas perguntas.
Dizer que a realidade não existe ou o absoluto não existe é balela de quem quer se dizer “dono da verdade”. Em diferentes teorias, apenas mudamos o que é “realidade” e onde está o “absoluto”. Se não fosse assim, todo tipo de relativismo seria auto-refutável. O solipsismo é o único caso em que seria possível afirmar a inexistência de “realidade” (ou da “coisa em si”), mas ainda assim pode-se considerar que “realidade” é essa única mente existente. Eu disse “balela” pois isso é exatamente o que os construtivistas sempre criticaram: a posição autoritária de um conjunto de positivistas do século XIX (e.g. Lord Kelvin), e estranhamente essa posição é a mesma criticada. Além disso, tal crença é apenas destrutiva para os que, como Kant, muitos dos positivistas lógicos (e.g. Bertrand Russell), Piaget e e os construtivistas em geral, acredita que é um sujeito que realiza a classificação de algo como um “objeto”. É destrutiva pois permitiu que Alan Sokal formulasse um “teste de fé” com simplicidade, ao dizer que “aos que acreditam que é possível transcender as leis da física, estão livres para tentar da janela do meu apartamento”, e ele cita, também, o andar que ele mora (eu não lembro, mas tinha 2 dígitos). O livro “Fear of Knowledge” do Paul Boghossian é outro exemplo em que esses erros, mesmo que sejam considerados “meros detalhes” por muitos de nós da área artística e de humanidades, contribuem agressivamente para a desvalorização de nosso conhecimento.
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